Há
poucos dias, numa dessas incansáveis andanças pelas redes sociais, testemunhei
um indivíduo a explicar que os escritores antigos se demoravam nas descrições de
objetos e cenas aparentemente simples porque, dentre outros motivos, em suas
respectivas épocas as pessoas não conheciam o mundo como hoje. Essa verdade,
tão simples e direta, nunca me ocorrera à mente; então ponderei e concluí que,
de fato, perdemos os olhos de outrora.
Raciocinemos.
O avanço da tecnologia e da ciência trouxe ao homem incontáveis benefícios, em
especial o controle sobre a vida. Se um dia fomos reféns de gripes, hoje as
dominamos com remédios e toda sorte de vacinas; se antigamente temíamos as
tempestades e os trovões, agora os desafiamos com nossos para-raios e
imponentes edifícios. Além disso, através
da televisão, da internet e dos meios cada vez mais baratos (e mais rápidos) de
transporte, tornamo-nos capazes de conhecer o mundo como jamais seria possível
a nossos ancestrais. Uma criança no interior do Brasil consegue, mal movendo os
dedos, vislumbrar cidades no Japão e aprender sobre os animais da Antártida. Um
empresário consegue, em dois dias, ir ao outro lado do mundo e voltar. Tamanho
governo sobre as forças da natureza e sobre a transmissão de informações carrega
consigo, porém, um efeito colateral: foi-nos furtado o espanto.
Espanto
é assombro; é maravilhar-se, surpreender-se. Os antigos viam a tormenta se
aproximar e já pensavam na fúria dos deuses; nós fechamos as janelas e
confortavelmente nos aquecemos à luz do televisor, zombando da chuva que cai.
Se a segurança, por um lado, é boa (afinal nos mantém saudáveis e longevos),
por outro lado nos enfraquece a sensibilidade e a capacidade de deslumbre ante
as cenas e os momentos da vida. E isso, inevitavelmente, afeta a leitura. A
título de exemplo, imagine como foi a um camponês do século XIX, que nunca viu
o mar nem sentiu a água espumante nos tornozelos, ler as aterradoras descrições
de Herman Melville sobre a perseguição a uma baleia em “Moby Dick”. Sua reação
certamente foi mais extasiante do que seria ao homem moderno. Estamos cercados
pela computação gráfica. Dirigimo-nos ao cinema e, de maneira tão real que nem
sequer divisamos o que é miragem e o que é gravação, testemunhamos feitiços e
explosões, seres alienígenas e dragões, viagens a outros planetas e cidades se
desfazendo em hecatombes. Como haveríamos de nos admirar perante o relato de um
caçador dos mares? Estamos cansados de ver baleias – e peixes e tubarões e
tantas outras criaturas – na tevê e na internet. Vamos à praia quase que
anualmente. O vendaval tem sua devida explicação científica. Como haveríamos de
nos admirar?
Minha
intenção, contudo, não é tecer uma crítica, mas fazer um apelo. O espanto
precisa ser resgatado. Se como bons leitores queremos ser encantados por
flores, castelos e aventuras, o primeiro passo para o deleite é a ressurreição
do espanto e o renascimento da sensibilidade. É realmente difícil apreciar a
árvore no fundo do quintal quando o papel de parede do celular estampa uma
paisagem ainda mais bela. É penoso ler dois parágrafos nos quais o autor
descreve uma montanha quando todos os montes do mundo foram observados em uma
pesquisa online. Mas as coisas hão de
continuar assim? Se a resposta for positiva, é melhor que as páginas dos livros
amarelem intocadas.
Não,
não. Importa que a imaginação seja exercitada, reeducada, reiniciada. Quero
idealizar redemoinhos e carruagens de fogo como um leitor da época de Cristo,
não como alguém que já os viu em todos os ângulos e matizes nos filmes de
Hollywood. Quero possuir a vida de um cavaleiro feito menino que sente o frio
do metal pela primeira vez em seu corpo, não como alguém que montou dezenas de corcéis
em um jogo eletrônico. Se tencionamos ter experiências melhores e mais
profundas com as histórias que lemos, confio que a imersão aumentará à medida
que nos treinamos e nos induzimos a abandonar as velhas visões, as imagens
batidas e as cenas reiteradamente artificializadas, numa verdadeira limpeza da
mente, e nos posicionamos como ingênuos de uma era remota que conhecem apenas os
campos ao redor de suas casas e pouco afora isso. Somente então teremos autênticas
surpresas e inesquecíveis assombros.
Felizmente,
para esse propósito, não precisamos abandonar as máquinas ou as conexões ou os
filmes ultracomputadorizados de heróis, tampouco entrar numa máquina do tempo e
regressar a dias esquecidos. Temos, simplesmente, de transplantar a visão.
Exercitar os olhos. Como todo bom hábito, a sensibilidade pode ser
condicionada, reforçada. Não preciso renascer como um nativo da Floresta
Amazônica para me maravilhar ao ler contos sobre a neve; basta colocar-me em
seu lugar e tomar sua inexperiência por empréstimo. Posso, ainda, manter o
papel de parede do celular, desde que resolva largar os sapatos para
redescobrir o que é ter barro entre os dedos dos pés. Uma despretensiosa
caminhada longe das buzinas e dos motores é o suficiente para que o gigante da
próxima fábula se levante mais assustador, ainda que essa caminhada seja ficta,
mental. Como se vê, não é preciso muito. Só é preciso ler – e querer ler – com
os olhos do espanto.
—
Gabriel Lago.
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