sexta-feira, 19 de julho de 2019

Leia com os olhos do espanto



Há poucos dias, numa dessas incansáveis andanças pelas redes sociais, testemunhei um indivíduo a explicar que os escritores antigos se demoravam nas descrições de objetos e cenas aparentemente simples porque, dentre outros motivos, em suas respectivas épocas as pessoas não conheciam o mundo como hoje. Essa verdade, tão simples e direta, nunca me ocorrera à mente; então ponderei e concluí que, de fato, perdemos os olhos de outrora.

Raciocinemos. O avanço da tecnologia e da ciência trouxe ao homem incontáveis benefícios, em especial o controle sobre a vida. Se um dia fomos reféns de gripes, hoje as dominamos com remédios e toda sorte de vacinas; se antigamente temíamos as tempestades e os trovões, agora os desafiamos com nossos para-raios e imponentes edifícios.  Além disso, através da televisão, da internet e dos meios cada vez mais baratos (e mais rápidos) de transporte, tornamo-nos capazes de conhecer o mundo como jamais seria possível a nossos ancestrais. Uma criança no interior do Brasil consegue, mal movendo os dedos, vislumbrar cidades no Japão e aprender sobre os animais da Antártida. Um empresário consegue, em dois dias, ir ao outro lado do mundo e voltar. Tamanho governo sobre as forças da natureza e sobre a transmissão de informações carrega consigo, porém, um efeito colateral: foi-nos furtado o espanto.

Espanto é assombro; é maravilhar-se, surpreender-se. Os antigos viam a tormenta se aproximar e já pensavam na fúria dos deuses; nós fechamos as janelas e confortavelmente nos aquecemos à luz do televisor, zombando da chuva que cai. Se a segurança, por um lado, é boa (afinal nos mantém saudáveis e longevos), por outro lado nos enfraquece a sensibilidade e a capacidade de deslumbre ante as cenas e os momentos da vida. E isso, inevitavelmente, afeta a leitura. A título de exemplo, imagine como foi a um camponês do século XIX, que nunca viu o mar nem sentiu a água espumante nos tornozelos, ler as aterradoras descrições de Herman Melville sobre a perseguição a uma baleia em “Moby Dick”. Sua reação certamente foi mais extasiante do que seria ao homem moderno. Estamos cercados pela computação gráfica. Dirigimo-nos ao cinema e, de maneira tão real que nem sequer divisamos o que é miragem e o que é gravação, testemunhamos feitiços e explosões, seres alienígenas e dragões, viagens a outros planetas e cidades se desfazendo em hecatombes. Como haveríamos de nos admirar perante o relato de um caçador dos mares? Estamos cansados de ver baleias – e peixes e tubarões e tantas outras criaturas – na tevê e na internet. Vamos à praia quase que anualmente. O vendaval tem sua devida explicação científica. Como haveríamos de nos admirar?

Minha intenção, contudo, não é tecer uma crítica, mas fazer um apelo. O espanto precisa ser resgatado. Se como bons leitores queremos ser encantados por flores, castelos e aventuras, o primeiro passo para o deleite é a ressurreição do espanto e o renascimento da sensibilidade. É realmente difícil apreciar a árvore no fundo do quintal quando o papel de parede do celular estampa uma paisagem ainda mais bela. É penoso ler dois parágrafos nos quais o autor descreve uma montanha quando todos os montes do mundo foram observados em uma pesquisa online. Mas as coisas hão de continuar assim? Se a resposta for positiva, é melhor que as páginas dos livros amarelem intocadas.

Não, não. Importa que a imaginação seja exercitada, reeducada, reiniciada. Quero idealizar redemoinhos e carruagens de fogo como um leitor da época de Cristo, não como alguém que já os viu em todos os ângulos e matizes nos filmes de Hollywood. Quero possuir a vida de um cavaleiro feito menino que sente o frio do metal pela primeira vez em seu corpo, não como alguém que montou dezenas de corcéis em um jogo eletrônico. Se tencionamos ter experiências melhores e mais profundas com as histórias que lemos, confio que a imersão aumentará à medida que nos treinamos e nos induzimos a abandonar as velhas visões, as imagens batidas e as cenas reiteradamente artificializadas, numa verdadeira limpeza da mente, e nos posicionamos como ingênuos de uma era remota que conhecem apenas os campos ao redor de suas casas e pouco afora isso. Somente então teremos autênticas surpresas e inesquecíveis assombros.

Felizmente, para esse propósito, não precisamos abandonar as máquinas ou as conexões ou os filmes ultracomputadorizados de heróis, tampouco entrar numa máquina do tempo e regressar a dias esquecidos. Temos, simplesmente, de transplantar a visão. Exercitar os olhos. Como todo bom hábito, a sensibilidade pode ser condicionada, reforçada. Não preciso renascer como um nativo da Floresta Amazônica para me maravilhar ao ler contos sobre a neve; basta colocar-me em seu lugar e tomar sua inexperiência por empréstimo. Posso, ainda, manter o papel de parede do celular, desde que resolva largar os sapatos para redescobrir o que é ter barro entre os dedos dos pés. Uma despretensiosa caminhada longe das buzinas e dos motores é o suficiente para que o gigante da próxima fábula se levante mais assustador, ainda que essa caminhada seja ficta, mental. Como se vê, não é preciso muito. Só é preciso ler – e querer ler – com os olhos do espanto.

Gabriel Lago. 

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